O João era uma criança normal. Pra mim e pra minhas irmãs não havia nada de errado com ele, tirando o fato de que tomava remédios todos os dias e se submetia regularmente a cirurgias que abriam seu crânio. Ele tinha as mãos diferentes, mas os seus dedos juntos pareciam pra nós mais uma qualidade do que um defeito: pensávamos que deviam servir para algumas coisas, como nadar ou agarrar bolas no futebol. Em alguns sentidos, era um super-herói: João pulava da cama às seis da manhã pra remar, sabia de cor todas as linhas de ônibus e seus trajetos, comia mais que todos nós juntos e não engordava. Nunca ouvi, lá em casa, a palavra deficiência. Ouvíamos muito a palavra diferença, foneticamente tão parecida, mas semanticamente tão distante. Foi na rua que percebi que meu irmão era “deficiente”. Achava estranhíssimo quando os outros achavam o João estranhíssimo. Foi só depois de me perguntarem que doença ele tinha que fui perguntar à minha mãe que doença ele tinha. Foi aí que aprendi a expressão síndrome de Apert, para responder a todos que perguntavam: “O que é que ele tem?”. E as pessoas então ficavam mais calmas, mesmo sem fazer ideia do que isso significava. Também tinha que explicar para as crianças que não era contagioso, que elas podiam brincar e abraçar, que elas não precisavam fugir ou se esconder, que ele não mordia. Nem sempre funcionava. Foi aí também que conheci a outrofobia, essa doença tão comum e tão entranhada. Difícil apresentar o livro da sua mãe. Falei isso pra autora: ninguém vai levar a apresentação a sério, vão achar que eu só tô falando porque sou filho. Vou tentar ser imparcial: este livro é uma obra-prima. Droga. Desisto. Ponderando, talvez a obra-prima não seja o livro, mas a vida da minha mãe e sua luta cotidiana, que começa reprimida por freiras sadomasoquistas (redundância?) e passa por loucuras que nem eu sabia, porque minha mãe odeia autocomiseração. Pode ficar tranquilo: se você acha que vai encontrar neste livro lamúrias e autopiedade, você não conhece a minha mãe. Se você quer uma história de superação, desista. Já vou logo adiantando: no fim tudo dá certo. Porque no começo também dá. Esta é, antes de mais nada, uma história de amor. Não qualquer amor, mas o amor mais difícil, e o mais raro. O amor pela diferença. Não confundir com deficiência. Ele, só ele, salva. Gregorio Duvivier
O João era uma criança normal. Pra mim e pra minhas irmãs não havia nada de errado com ele, tirando o fato de que tomava remédios todos os dias e se submetia regularmente a cirurgias que abriam seu crânio. Ele tinha as mãos diferentes, mas os seus dedos juntos pareciam pra nós mais uma qualidade do que um defeito: pensávamos que deviam servir para algumas coisas, como nadar ou agarrar bolas no futebol. Em alguns sentidos, era um super-herói: João pulava da cama às seis da manhã pra remar, sabia de cor todas as linhas de ônibus e seus trajetos, comia mais que todos nós juntos e não engordava. Nunca ouvi, lá em casa, a palavra deficiência. Ouvíamos muito a palavra diferença, foneticamente tão parecida, mas semanticamente tão distante. Foi na rua que percebi que meu irmão era “deficiente”. Achava estranhíssimo quando os outros achavam o João estranhíssimo. Foi só depois de me perguntarem que doença ele tinha que fui perguntar à minha mãe que doença ele tinha. Foi aí que aprendi a expressão síndrome de Apert, para responder a todos que perguntavam: “O que é que ele tem?”. E as pessoas então ficavam mais calmas, mesmo sem fazer ideia do que isso significava. Também tinha que explicar para as crianças que não era contagioso, que elas podiam brincar e abraçar, que elas não precisavam fugir ou se esconder, que ele não mordia. Nem sempre funcionava. Foi aí também que conheci a outrofobia, essa doença tão comum e tão entranhada. Difícil apresentar o livro da sua mãe. Falei isso pra autora: ninguém vai levar a apresentação a sério, vão achar que eu só tô falando porque sou filho. Vou tentar ser imparcial: este livro é uma obra-prima. Droga. Desisto. Ponderando, talvez a obra-prima não seja o livro, mas a vida da minha mãe e sua luta cotidiana, que começa reprimida por freiras sadomasoquistas (redundância?) e passa por loucuras que nem eu sabia, porque minha mãe odeia autocomiseração. Pode ficar tranquilo: se você acha que vai encontrar neste livro lamúrias e autopiedade, você não conhece a minha mãe. Se você quer uma história de superação, desista. Já vou logo adiantando: no fim tudo dá certo. Porque no começo também dá. Esta é, antes de mais nada, uma história de amor. Não qualquer amor, mas o amor mais difícil, e o mais raro. O amor pela diferença. Não confundir com deficiência. Ele, só ele, salva. Gregorio Duvivier